O tempo certo das coisas
 



Cronicas

O tempo certo das coisas

Mônica Leite


O que eu mais gostava com a chegada do inverno era o início da safra de morangos. Pequena, ainda não conhecia os calendários para acompanhar o ciclo das estações, mas já sabia que as brincadeiras no quintal estavam com o tempo contado quando minha mãe colocava as grossas blusas de lã que tricotava em casa.

Nesses dias frios, e devidamente aquecida, eu seguia com meu avô para a feira livre. Com seus cabelos ralos, caprichosamente arrumados com brilhantina, olhos azuis e passos miúdos que vestiam sapatos brancos de confecção própria (era sapateiro), ele me levava pela mão e caminhávamos no silêncio confortável que era típico de sua personalidade. Meu avô carregava nos braços uma velha cesta de palha, que ia balançando por todo o caminho.

- Salve lá, seu Bruno! - gritava o feirante, logo que nos avistava.

- Bom dia! - respondia ele. - Viemos buscar os morangos para a geleia.

- Ah, muito bem, seu Bruno. E o senhor, muito frio por aí? - perguntava, olhando divertido para o capote do meu avô, herança de seu pai italiano.

- Com frio está você, pois eu estou bem agasalhado. - devolvia meu avô, numa piada que já durava anos.

Cumprimentos trocados, começava-se a seleção das frutas. Meu avô preferia aquelas mais maduras, quase passadas, o que dava um sabor exótico à geleia - pelo menos, é assim que me lembro. Permitia que eu colocasse um ou outro morango na cesta e, se não passasse no seu crivo, descartava discretamente para não magoar meus sentimentos.

De volta para casa, lavávamos os morangos e meu avô os colocava em um tacho apropriado. Não tinha nada de pesar as frutas e o açúcar, não. Era tudo a olho. E então, a magia iniciava. O perfume da geleia começava a se espalhar pela casa, pelo quintal e pela vizinhança.

Enquanto as frutas e o açúcar desenvolviam a sua química numa dança borbulhante, minha avó cortava fatias bem finas de pão amanhecido e as punha no forno do fogão a lenha, para tostar bem devagarzinho. Então, arrumava a mesa com a toalha que ela fazia questão de dizer, todas as vezes, que pertencia ao seu enxoval. Era um tecido branco, de linho, com bordados muito delicados. Com manchas de diversas tonalidades, a toalha denunciava a passagem do tempo e as inúmeras reuniões de família. Depois, ela distribuía as xícaras de café, todas desparceiradas, num colorido rústico e aconchegante.

Ali pelas três horas da tarde, as pessoas de sempre começavam a chegar para o café, sentavam-se à mesa sem cerimônia, como de costume. E lá vinha meu avô, carregando sua preciosidade. Depois dos elogios esperados e merecidos, e enquanto degustavam aquela maravilha, falavam de coisas do passado e da saudade da pátria que ficou para trás.

Eu mantive o hábito de fazer a geleia de morangos do meu avô. Só que agora, como a safra não tem começo nem fim, a gente faz quando dá vontade. Mas confesso que o encanto se perdeu porque não se respeita mais o tempo certo das coisas, acredito que as estações carregam uma sabedoria importante, que muitas vezes não compreendemos.

Um dia desses, o feirante prometia morangos adoçados com cana-de-açúcar.

- Mas moço, como pode uma coisa dessas? - perguntei.

- Moça, a gente coloca melado na água e rega as frutas.

Comprei quatro caixas e claro, fui redondamente enganada.


Mônica Tozetto de Barros Leite, natural de Jundiaí, interior de São Paulo, é jornalista, escritora e historiadora. Por mais de trinta anos atuou como empresária no ramo da comunicação. Atualmente, se dedica à escrita de ficção, paixão antiga. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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